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“Sou médico especialista em Cuidados Primários e Saúde Pública. Sou das Filipinas e trabalhei lá com a MdM até Junho de 2014, enquanto coordenador médico, após o Tufão. Em Julho eclodiu a guerra em Gaza e convidaram-me para trabalhar aqui. Estou cá desde 3 de Agosto.


Aqui em Gaza não enfrentamos os “habituais” desastres naturais e foi inicialmente muito difícil. O ruído dos bombardeamentos e dos disparos de rockets assustaram-me. O barulho é tão forte que até nos atinge o coração. Depois acabei por me habituar. Mas sinto sempre que o próximo rocket vai atingir a mim ou os meus vizinhos. Um dos elementos da nossa equipa disse-me que, durante o Ramadão, ouviam o ruído dos rockets e das bombas a cada 10 minutos, o que causou grande trauma entre homens, mulheres e crianças em Gaza. Às vezes durmo no trabalho em vez da casa de hóspedes porque me sinto mais seguro.


Aqui, não saber se vai haver um cessar-fogo requer uma acção rápida da nossa parte. Temos dois planos: O Plano A para uma situação sem cessar-fogo, quando os deslocados se encontram em escolas governamentais, em que podemos ajudar com as nossas clínicas móveis, disponibilizando cuidados de saúde primários. Quando existe um cessar-fogo passamos para o Plano B e acompanhamos os deslocados até estes regressarem às suas comunidades e casas destruídas. Trabalhamos em coordenação com o Ministério da Saúde, de forma a assegurar que a nossa acção, em termos de cuidados primários, é complementar ao trabalho desenvolvido por eles.


É muito difícil viver em Gaza neste momento. Não sabemos se vai haver um cessar-fogo ou se os bombardeamentos continuam. As pessoas em Gaza estão cansadas desta situação. Temos dois dias de cessar-fogo, depois um dia sem, cinco dias de cessar-fogo e nenhum durante um dia… a vida diária apenas depende do cessar-fogo. É totalmente desumano. Tem havido bombardeamentos de norte a sul de Gaza desde 8 de Julho. Uma situação traumatizante para as pessoas.


É muito difícil agora mas estou muito satisfeito com a equipa local. São muitos activos… apesar dos bombardeamentos, vêm todos os dias ao trabalho e à Clínica Móvel. Saúdo-os.

 

Trauma:


Muitos dos adultos que observamos nas clínicas móveis queixam-se de dores de costas, musculares, de cabeça e rigidez dos membros inferiores. Quando lhes perguntamos quando os sintomas começaram, respondem durante a guerra. É algo mais profundo devido ao stress. É a guerra mais longa que viveram.

 

Crianças:


As mães dizem que as crianças têm incontinência urinária durante a noite. Algumas das crianças gritam, outras não falam ou tornaram-se inactivas durante a guerra.


Há frustração quanto ao que lhes irá acontecer se não houver um cessar-fogo e como será o seu futuro.


Para as pessoas é importante expressar os seus sentimentos. A clínica móvel disponibiliza cuidados preventivos. Os médicos falam com os doentes e o psicólogo dá aconselhamento individual e em grupo. Esta é a estratégia utilizada nas escolas governamentais (onde nós trabalhamos). É bom ter um psicólogo que sabe abordar este stress.


Doença física:


Cerca de 1000 pessoas vivem numa escola. Entre 40 a 60 pessoas vivem numa divisão. A sobrelotação leva a um aumento de casos de diarreia, infecções respiratórias, sarna e piolhos. Também existem as questões da água, acesso a água limpa e potável, e da higiene pessoal. A Médicos do Mundo (MdM) tem acções educativas sobre higiene, tal como lavar adequadamente as mãos, e sobre temas relacionados com o consumo de água de recipientes. Nas escolas existem homens e mulheres, famílias inteiras. Os homens dormem nos corredores, enquanto as mulheres e as crianças dormem nas salas. Existem problemas relacionados com os duches e as casas de banho. Há alturas em que a limpeza regular não é realizada. Trata-se de um desafio: como melhorar a limpeza e quem irá limpar as casas de banho? A MdM disponibiliza sessões educativas sobre como manter a higiene. Também mantemos encontros com o supervisor das escolas para defender a manutenção da limpeza. No entanto existem desafios no que se refere à disponibilidade de material de limpeza e à sua necessidade de fornecimento.


Equipa:


No início era o único estrangeiro. A equipa local chamava-me para me perguntar se estava bem e se necessitava de ajuda. É bom ter outras pessoas aqui para me ajudarem. Trabalho na área humanitária há algum tempo, com as Nações Unidas e com a MdM. Estou muito feliz pelo envolvimento da equipa local. Eles não parariam de trabalhar por causa da guerra. No dia a seguir ao cessar-fogo ter sido quebrado estava no trabalho. Vieram todos ter comigo. Perguntei: Porque estão aqui? Responderam: Temos de trabalhar! Nunca esquecerei o seu envolvimento.


Histórias de Gaza:


Pessoalmente, enquanto coordenador médico, num único dia, observei 120 doentes, em média vi 90 pessoas por dia.


Chegou uma mulher com 6 filhos. Tinha 25 anos. Questionada sobre quando se tinha casado, respondeu que com 14 anos. Vive em Beit Hanoun e a sua casa foi totalmente destruída. Não sabem o que lhes vai acontecer porque o marido é um agricultor e ela uma dona de casa. Vão ficar na escola. Todos os seus filhos têm sarna. Deram-lhes uma ração de comida (pão de pita, alimentos enlatados e comida de restaurantes) mas há mais de um mês que não têm forma de cozinhar.


Uma menina que realizou uma operação ao coração chegou com o seu pai. A sua casa foi parcialmente danificada. Necessita de uma consulta de acompanhamento em Jerusalém mas não consegue lá ir há mais de um mês devido aos documentos necessários à deslocação. A MdM deu-lhe uma carta de referência para o Hospital Al-Shifa para que a possam ajudar aqui. Agora é muito difícil sair da faixa de Gaza.


Efectuei uma avaliação da região leste da faixa de Gaza até à fronteira. Num local da Região Centro Leste, chamado de Juhor ed-Dik, vi uma comunidade completamente destruída. Não consegui identificar o Centro de Cuidados Primários que ali existia. Praticamente todas as casas e oliveiras foram reduzidas a escombros pelos tanques e caças F16 israelitas. Em Rafah, a localidade de Zalata foi também praticamente varrida do mapa. Em al-Fukhari, Khan Yunis, o centro de cuidados primários apoiado pela MdM foi danificado. Da Região Central a Rafah e até perto do aeroporto de Gaza (Shokat as-Sufi), apenas vi algumas poucas casas de pé.


Uma menina de cinco anos perguntou à mãe o motivo destes aviões nunca pararem o bombardeamento. Será que nunca dormem ou comem?


É como um tsunami provocado pelo homem. Trabalhei no Sri Lanka em 2005, após o tsunami que matou mais de 200 mil pessoas, e no meu país (Filipinas) após o tufão. Gaza faz-me recordar imagens de casas destruídas. Aqui é diferente porque se trata de um desastre provocado pelo homem. Destruiu as oliveiras, tão importantes na vida das pessoas daqui, as suas casas, as mesquitas, os centros de saúde e as escolas. É difícil de aceitar a perda de um lar e da subsistência devido a um desastre provocado pelo homem e não pela natureza.


Cada deslocado tem uma história: como abandonaram as suas casas e como regressaram para ver como estava durante o cessar-fogo. Os civis não merecem isto. É importante que aquilo que aconteceu não seja esquecido. Há muito para fazer pelas pessoas de Gaza: a reconstrução das suas vidas, casas, centros de saúde, escolas e da sua dignidade. É bom que a MdM esteja aqui para ajudar os cidadãos de Gaza a continuarem. Muito precisa de ser feito para os ajudar física e mentalmente. Não consigo compreender porque têm de viver com isto: ora com cessar-fogo, ora sem cessar-fogo. É brincar com as vidas dos civis de Gaza. Os líderes mundiais devem assegurar uma paz duradoura nesta região. Não devemos esquecer Gaza.


Sou uma testemunha desta barbaridade. Existem mais de 2000 mortos, muitos são crianças. 10.400 pessoas foram feridas, muitas são crianças. A guerra tem um impacto negativo nestas crianças que sofreram muito ao enfrentar bombardeamentos diários sem ter para onde fugir, escondendo-se nas suas casas sempre com medo de serem os próximos alvos. Cada criança de Gaza tem o direito a um local seguro para viver, brincar e aprender. É importante chamar a atenção cada vez mais para este problema e encontrar uma solução real e duradoura. Os cidadãos de Gaza têm o direito de ter vidas normais tal como quaisquer outras pessoas. É uma responsabilidade de todos.

 

 Crianças palestinianas deslocadas, a viver numa escola em Gaza,

celebram o cessar-fogo.

Crédito foto: ©Sacha Petryszyn

 

publicado às 17:04


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